Praticamente me convidei para esta velejada, ao saber dos planos do comandante João Baptista "Tita" Pinto, de levar o seu Arraia Manta para Punta del Este neste final de ano. Eu já havia feito essa navegada com o Congere em 2010 (ver no blog em JAN/10), mas agora tinha um atrativo especial: o Arraia Manta é um Delta 36, irmão-gêmeo do Friday Night, eu queria ver como o barco se comportava no mar. Além disso, nessa época as condições tendem a ser bem favoráveis para essa "descida", com ventos predominantes dos quadrantes E-NE.
Após algum trabalho para fazer conciliar as agendas de trabalho, consegui confirmar a minha ida com a tripulação do Comandante Tita, que tinha ainda o Ferrugem, o Ricardo Hoerde, o Marcelo Damasceno Ferreira e o Demósthenes "Demo" Pinto, irmão do comandante.
O barco já estava em Rio Grande desde o início de dezembro, nos economizando umas 150 milhas do percurso total entre o Veleiros, em Porto Alegre, e o porto de Punta del Este.
Nos encontramos em Rio Grande no dia 26/12, eu e o Ferrugem descendo de ônibus desde Porto Alegre e o Tita, Marcelo e Ricardo subindo de ônibus desde Punta, onde estavam veraneando com as famílias. O Demo descia de carro com a família e desembarcou em Rio Grande para subir a bordo ao Arraia Manta.
Após os trâmites de saída do barco e da tripulação na Capitania dos Porto, zarpamos do Rio Grande Yacht Club -RGYC- às 16:30 do dia 26/12, com cerca de 250 milhas pela frente até Punta del Este. Fizemos apenas um pequeno pit-stop no Posto do Guto, para abastecimento de diesel e gelo para o traslado, quando tiramos a foto oficial da tripulação na partida, devidamente uniformizada com as novas camisas do Arraia Manta.
A foto oficial da saída foi batida pelo amigo Guto Vieira da Fonseca, ex-Comodoro e eminência-parda do RGYC
Comandante Tita concentrado, no percurso entre o RGYC e a saída da barra de Rio Grande
O percurso entre o RGYC e a saída da barra é de 12 milhas, que fizemos a motor. Os molhes de Rio Grande avançam cerca de 2 milhas mar adentro, no sentido SE, com um farol na extremidade de cada um.
Extremidade do chamado molhe "oeste", à direita de quem sai para o mar, ...
... e o final do molhe "leste", à esquerda.
Saímos da barra e entramos em mar aberto às 18:30, com um vento leste de cerca de 10-15 nós, proporcionando ótima navegada no rumo S-SW, aproximadamente 210°. Como a previsão do Windguru apontava a entrada de ventos do quadrante sul já na madrugada, na altura do Chuí, optamos por fazer uma rota mais aberta e distante da costa, para ganhar altura e depois poder velejar em um só bordo, na eventual rondada para sul.
Preparando para a noite, com seis pessoas a bordo, sugeri quartos de vigília de duas horas navegando para quatro descansando para cada um, com a troca sempre de um tripulante a cada hora, das 20 às 8hs da manhã. Dessa forma cada um navega quatro horas e descansa oito a cada noite, a cada hora trocando de parceiro, possibilitando uma boa dinâmica de trabalho e descanso a bordo. Para este traslado, também intercalamos os três supostamente mais experientes - o Comandante Tita, o Ferrugem e eu -, para que a todo o momento sempre houvesse um desses no quarto de navegação. Meus quartos de duas horas eram das 22 até a meia-noite e depois das 4 às 6 da manhã, na primeira hora acompanhado pelo Hoerde Boy e na segunda pelo Marcelo.
Independente das habilidades e conhecimentos náuticos de cada um, o fator mais relevante para a manutenção do alto-astral a bordo é sempre a não presença de um chato. Um tripulante-mala tem um poder altamente destrutivo sobre todos a bordo, ainda mais no ambiente exígüo de um 36 pés, sem a opção possível de jogar o tal sujeito na água. Nesse aspecto o Comandante Tita foi exemplar ao selecionar os tripulantes, tivemos sempre ótimo ambiente a bordo durante todo o percurso.
Ferrugem, o timoneiro Cor-de-Laranja
Aqui, o povo desfrutando uns acepipes do Marcelo, acompanhados de um bom vinho
(que depois pareceu não estar tão bom assim, mas é outra história...)
O Marcelo nos brindou também com seus talentos culinários, preparando uma massa diabólica com alcaparras e algumas outras cositas más, que desceu super bem na entrada da noite, que estava muito escura, com lua minguante e muitas estrelas a barlavento.
O Mestre-Cuca Marcelo mandou bem na cozinha
No meio da noite tivemos um rebosteio esquisito, em algum ponto entre o farol do Albardão e o Chuí, com rajadas de vários lados que causaram até alguma desorientação a bordo. Subi do meu descanso para ajudar a turma do quarto de vigília, uma das escotas da genoa havia soltado e a outra estava trançada por baixo da âncora, só não me perguntem como isso foi acontecer. Fiz uma caminhada tranquila até a proa, devidamente preso pelo cinto de segurança (o comandante Tita é quase obcecado por todas as parafernálias de segurança que se pode ter a bordo). Desvencilhei a escota da âncora e recolhemos a outra que havia soltado, para depois restabelecer a normalidade a bordo, já com o vento firmando do quadrante sul, exatamente como previsto pelo Windguru.
Como tínhamos feito essa saída de Rio Grande bem abertos e a essa altura já estávamos a umas 30 milhas da costa, a entrada do vento sul foi tranquila, possibilitando uma orça folgada aterrando até a altura do Cabo Polônio, já no Uruguai.
No meu quarto das 4 às 6 da manhã, ainda bem escuro, conheci na prática o funcionamento do AIS (Automatic Identification System), um sistema de monitoramento de curto alcance, que funciona pelo rádio VHF e permite identificar e localizar embarcações por meio da troca eletrônica de dados, localizando-as no plotter ou radar, de forma que uns possam ver e tentar contato com outros já sabendo do que se trata o sinal mapeado. O sinal passa o nome e tipo da embarcação mapeada, tamanho, propulsão, velocidade e rumo de proa. Especialmente, a partir da identificação de possível rumo de colisão, o sistema indica o ponto da maior proximidade (CPA - Closest Point of Approach) e o tempo estimado para que ele ocorra, facilitando em muito o contato e a combinação das manobras evasivas.
E foi assim que aconteceu, estava o barco no piloto automático e eu a conversar com o Hoerde, quando ouvimos um chamado no VHF:
- Sailboat Arraia Manta, sailboat Arraia Manta, this is passenger vessel Zenith calling!
O Zenith é um navio de passageiros de 208 metros, para mais de 1.300 passageiros e 600 tripulantes, que subia a costa do Uruguai em rumo contrário ao nosso. Após a chamada nós pudemos facilmente ver o navio todo iluminado, mas ele não enxergava o nosso pequeno veleiro, apenas tinha a posição pelo radar e AIS. De qualquer forma, nos identificamos e o recado deles foi bem educado, porém direto:
- Sailboat Arraia Manta, I see you on AIS and we believe we're crossing too close, may I suggest you to change your course and steer 10 degrees to starboard?
Nossa resposta foi pronta e rápida:
- OK Zenith, sailboat Arraia Manta confirming it is steering 10 degrees to starboard.
Agradecimentos feitos e assim cruzamos com o navio. Quando estávamos já no través e a uma distância segura, nós os chamamos novamente e comunicamos que estávamos retornando ao curso anterior, now 10 degrees to the port side:
- OK Arraia Manta, thank you very much for your cooperation and have a nice trip.
E assim nos despedimos do Zenith, que seguia rumo ao Brasil, tudo muito bem civilizado e tranquilo.
O amanhecer a primeira noite no mar nos proporcionou um colorido muito bonito, ainda que não tivéssemos um lindo nascer do sol, pois estava nublado para o leste.
Amanhecendo da primeira noite
Início do segundo dia no mar
Após o café da manhã do segundo dia o Tita resolveu "pescar" o almoço, e lá foi ele com uma vara diabólica, carretilha turbo, iscas artificiais de última geração, enfim todo um aparato tecnológico que só poderia trazer muito peixe mesmo. Chegamos a sentir o gostinho do sashimi do Demo, que já propagandeava seus talentos de cortador de peixes.
O resumo da pescaria é que ficamos algumas horas "corricando"... e nada!! Resumo da ópera, o Tita enquanto pescador... é um grande velejador e engenheiro!
Seguimos nossa navegada, com um rumo cada vez mais inclinado para oeste, acompanhando as curvas da costa do Uruguai e torcendo para a direita nas "esquinas" do Capo Polônio e de La Paloma. A essa altura o vento começou a ficar mais fraco, quando resolvemos ajudar e dar uma empurradinha com o motor, ficando assim praticamente todo o tempo até Punta.
O Comandante Tita é doido por segurança e tínhamos todos os apetrechos a bordo, ainda bem que não precisamos usar essas jóias aí de baixo, o aparato de homem-ao-mar e muito menos a balsa de salvatagem. Sempre é bom ter, mas melhor mesmo é nunca precisar usar!
Já no Uruguai, colocamos a bandeira do país visitado no nosso estaiamento de boreste, como manda o regulamento internacional.
Mais uma noite bem escura com a lua minguante lá no fundo, antecipando um amanhecer maravilhoso que viria a seguir.
Tirei essa sequência do amanhecer entre 6:20 e 6:30 do sábado 28/12, já nas proximidades da Laguna Garzon e do farol de José Ignácio, no approach final para Punta.
O dia clareou quando já víamos o perfil dos prédios de Punta na proa, em aproximação direta.
Contornamos a península às 8:00, com a cidade ainda dormindo e um bonito visual da parte baixa e do farol de Punta del Este.
Aqui cruzamos a ponta e entramos oficialmente no Rio da Prata, com a Isla Gorriti ao fundo.
Hoerde Boy e o Demo, fazendo os registros finais da travessia
Na chegada ao porto pudemos ver de perto o "pequeno" Pink Gin e seus 152 pés, cujo modesto mastro (50m?) já avistávamos de mar aberto, por trás dos edifícios de Punta. Simplesmente espetacular!
Atracamos o Arraia Manta no trapiche da Prefectura Naval de Punta del Este por volta das 8:30 do dia 28/12, cerca de 39 horas após o abastecimento em Rio Grande, ou 40h após deixarmos o RGYC.
O descanso dos guerreiros na chegada
A foto oficial da tripulação - devidamente uniformizada - na chegada, ...
...e o caloroso comitê de recepção das famílias do Comandante e dos tripulantes, com amigos de Punta.
Após a recepção calorosa tivemos a última tarefa do dia, os trâmites de imigração dos tripulantes e o registro de entrada do barco no porto, tudo bem tranquilo e sem complicações.
A água fria traz as mães-dágua, que são sempre onipresentes em Punta, desencorajando qualquer banho nas proximidades.
Era isso pela navegada, ainda ficamos em Punta até domingo para pegarmos o ônibus da TTL de volta a Porto Alegre, eu e o Ferrugem. Os demais ficaram veraneando em Punta com as famílias.
No sábado ainda peguei uma praia em Bikini - Manantiales com o Hoerde e família, muito legal. Por coincidência paramos exatamente defronte ao ex-apartamento do Wally Jacaré, nosso destino de algumas boas viagens e farras no passado.
Valeu a parceria, Hoerde Boy, Martinha, JP e Eduardo!
No resto do tempo livre ficamos explorando o porto de Punta e seus barcos, com destaque para o Pink Gin, que não resistimos e fomos olhar mais de perto.
O novo Beneteau com o casco vincado em shine e a popa bem larga e aberta, ...
... a máquina de regatas Lola, um TP52, ...
Nosso bonito visual do "descanso" do Arraia Manta no porto
Por fim, registramos a grande receptividade cinco estrelas do pessoal da casa do Comandante Tita, que nos recebeu fidalgamente na nossa breve estada por lá, fazendo com que nos sentíssemos em casa. Valeu Aninha, Felipe e Dona Déa!
Nosso retorno foi no confortábilíssimo ônibus leito da TTL, ainda que muito demorado pelo atraso na saída e trâmites de fronteira. Terminei chegando em Porto Alegre perto das 10 da manhã do dia 30, só deu tempo para um banho em casa e às 11 e pouco já estava no trabalho, cfe. prometido e combinado com os colegas, que viabilizaram que eu pudesse sair para essa navegada. Valeu, Aldo!
Resumindo tudo, foram ótimos dias, grande navegada com uma grande parceria, tudo especial!
Faremos muitas outras!!